Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo – Parte 1


A
panhei o elevador e preparei-me para mais uma consulta. Desde que me decidira a consultar um destes auto-intitulados salvadores da humanidade que nunca tinha chegado atrasado a nenhuma sessão. Hoje não seria excepção. Confesso que este ritual de deixar correr as águas me faz bem. Além disso sinto prazer em vê-la. E o prazer que retiramos das coisas que fazemos é uma justificação bastante válida. Não é que eu seja um freak das emoções mas não posso negar certas inclinações que me fazem constatar que existe um bright side of life. E como de momento não encontro o lado negativo destas visitas, vou aproveitar a viagem que se mostra agradável. Pois se todas as viagens nos transformam de alguma forma, nem todas são um sossego. Obviamente que existirá um lado negativo nestas sessões; apenas ainda não o desvendei. Aposto que está escondido, à espera de me pregar uma rasteira. Normalmente é o que acontece quando não vemos os lados todos da questão. Às vezes penso se o mesmo sentimento de bem-estar me tomaria se as consultas fossem com um psicólogo, se fossem com um homem? Quem sabe? Se ele fosse um mestre exímio a lidar com a psique humana talvez me fizesse esquecer os sexismos de algibeira. Se recuar no tempo, e passar em revista os meus trinta e oito anos, não encontro qualquer homem com quem tenha criado algo que se possa chamar uma relação de intimidade. A indiferença total reina nas minhas relações com o sexo masculino. Mesmo nas amizades mais sinceras, que cultivei em certas fases da vida, não me parecem dignas da minha memória. Tanto que só a muito custo consigo arrancar algumas imagens desses tempos. Portanto os amigos não importam, pelo menos para mim, e digamos que já tenho um conjunto razoável de experiências que me permitem dizer que se trata de uma verdade pessoal. A dificuldade que eu tenho em trazer à memória estes companheiros de guerra contrasta com a facilidade com que eu recupero as mulheres. Mesmo aquelas cuja intimidade é, foi, e será, zero. Provavelmente isto trata-se de um complexo qualquer que a minha psicóloga me faz o favor de ocultar. É deveras uma mulher com tato. Se eu conhecesse as características do meu complexo começaria logo a fazer conjunturas disparatadas para me acalmar e assegurar que eu sou a mais normal das pessoas, o que reduziria a eficácia das consultas. A razão é mesmo um bálsamo que cura tudo, ao mesmo tempo que nos mantém doentes. Se a exercitarmos regularmente pudemos muito bem criar uma vida virtual que só existe para nós. E é garantido que ela será perfeita como num conto de fadas. Claro que esta habilidade avançada de ilusionismo parece não estar ao alcance de todos, senão como é que se explica a necessidade, algo doentia, das pessoas realizarem os seus desejos materialmente? Multidões que projetam as mais mirabolantes fantasias em roupas, viagens, amores, carros, comidas, e outros fetiches, para depois caírem nas mais negras depressões ao descobrirem que nunca ficam satisfeitas com absolutamente nada. Felizmente algumas pessoas iluminadas aprendem com as experiências e chegam à conclusão que não existe objeto algum, real ou imaginário, que nos satisfaça. Suponho até que se trata de uma condição necessária à vida, a insatisfação. É como se esta anomalia cósmica fosse a única força capaz de nos arrancar da cama todos os dias. É como se fosse, mas não é, porque na realidade cada um tem as suas ideias em relação a isto. Não se trata de algo consensual como a força da gravidade. O certo é que as manifestações do seu poder são semelhantes em qualquer pessoa. Por isso, para mim, tem sentido esta força que eu chamo de insatisfação, e sempre que me debruço nos seus mistérios assusto-me com o seu poder. É verdadeiramente cruel na sua imensa maldade. Consigo imaginar-me em várias circunstâncias onde esta força sem deus me atiraria, como se nada fosse, para situações que não me trariam qualquer tipo de alegria. O recusar do amor de uma mulher em troca de uma aventura idiota, só para me provar capaz de atos heróicos, é uma delas. Sabotar propositadamente uma vida pacata e segura é outra, ou então o ser incapaz de aguentar temporariamente um trabalho aborrecido em nome de uma recompensa futura. Ou mesmo ficar no calor da cama durante uma manhã de inverno, ou passar o dia a apanhar sol, sem no final me sentir mal pela minha justa preguiça. Admiravelmente há sempre algo que me vem assombrar os melhores momentos, que nem nuvem cinzenta no céu de maio. E foi esta força chamada insatisfação que me pôs no caminho do psicólogo. A escolha deste conselheiro não foi muito difícil, pois como é costumeiro em todas as decisões que afetam a vida de um homem para lá do razoável, foi absurdamente simples. Bastou-me pesquisar na net por psicólogos e escolher aquele que se encontrava mais perto da minha residência.